Tomando como ponto de partida O Anjo Ferido, uma pintura de Hugo Simberg, a Ana Carrilho criou esta história:
Certo dia, algures em 1903, um anjo desceu do céu sem que o seu criador soubesse. Ela só queria explorar um pouco mais da terra e reencontrar o seu amigo humano, uma vez que o Senhor a proibiu de ver o seu amado, por este ser um demónio do submundo.
A bela figura angelical aproximou-se dos portões luminosos, preparou as suas longas e belas asas, fechou os olhos e saltou. Sabia perfeitamente que as asas se abririam no momento certo, logo não havia motivos para pânico.
Já com os pés assentes em terra humana, caminhou até chegar à casa de André, o único que sabia do seu pequeno “segredo” e mais uma vez pôs-se a contar-lhe as novidades. Ora falava de idosos, crianças e animaizinhos indefesos que infelizmente tinham chegado à reta final, ora falava dos seus irmãos que nunca sequer ousavam desobedecer ao seu Pai. Chegou até a mencionar a bela paisagem e as águas tão límpidas do rio, mas esse assunto desapareceu rapidamente, tal como o ânimo do anjo.
Sabia que o seu amigo humano iria apenas ouvi-la e depois falar dos seus assuntos, mas desta vez o sentido dela disse-lhe que algo estava errado, só não conseguia descobrir o que era. Pensou que poderia ser algo com o humano, tinha noção de que um jovem negro não sobreviveria muito tempo numa sociedade racista como aquela. Era questão de tempo até que se encontrassem no céu, isto, claro, se o Senhor não se irritasse com um deles e decidisse que o submundo seria o mais adequado para estadia eterna.
De repente, um estrondo alto faz-se ouvir e uma luz avermelhada aparece. Era Cain, a criatura mais travessa e bela do submundo. Já disfarçado de humano, aproxima-se dos dois sentados no chão, dá um aperto de mão a André e um abraço apertado ao ser angelical ali presente e, como não podia deixar de ser, faz o seu típico elogio à menina, que cora como sempre. Senta-se com eles e emenda o assunto antigo com as histórias novas do inferno, mas cansa-se rapidamente e, persuasor como é, convenceu os amigos a explorar mais da nossa superfície.
André foi à frente, uma vez que conhecia melhor os possíveis perigos, já Cain e o anjo conversavam animadamente sobre os novos moradores de ambos os mundos, claro que sem deixar de lado os elogios, palavras e gestos melosos que ninguém conseguiria replicar.
Viram casas, prédios de empresas, quintas com animais adoráveis, parques de estacionamento e tudo o que podemos oferecer. Brincaram com crianças de pequenas famílias e animaizinhos abandonados ficando sempre com um pesar por vê-los sofrer, isto é, nem todos, o demónio não conseguia sentir pena, estava no seu íntimo ser um ser cruel e impiedoso. Foram ver praias, onde a areia incomodava os não-humanos e relaxava o nosso rapaz, até numa montanha estiveram, sendo o anjo encarregado de levá-los ao topo por ser a única capaz de usar as suas asas até num mundo poluído como o nosso.
Quando voltaram para o pequeno rio, André teve de sair por uns instantes e o demónio decidiu que tinha de voltar a sentir os lábios de quem tanto amava. Justamente nesse momento, Nosso Senhor viu o pecado que a sua filha acabara de cometer e, furioso por ter sido ignorado ao proibir a menina, faz com que uma enorme ferida chegasse diretamente ao coração do delicado anjo. Ela não aguentou, por mais que não houvesse marcas visíveis, a ardência no peito alastrava-se cada vez mais, fazendo com que fosse impossível respirar. A menina caiu com a fraqueza nas pernas e parecia incapaz de falar, Cain, assustado e angustiado por ver a sua amada assim, gritou para que André viesse depressa. Juntos, puseram-na numa maca improvisada e levaram-na para o único sítio puro o suficiente para salvá-la.
Infelizmente, não chegaram a tempo. André perdeu a sua única amiga e Cain, bem, nunca mais foi o mesmo. Sem a sua amada, tornou-se alguém completamente diferente, era apenas uma sombra do demónio que conhecemos.
Assim termina a história dos dois únicos seres capazes de desafiar os seus Senhores por um amor incerto, que acabou em tragédia. Quanto ao jovem André, ele tornou-se o responsável por transmitir esta história a quem acha que o amor é impossível. Uma pequena curiosidade, chamo-me André, prazer em conhecer-vos, crianças! Espero que gostem de uma das minhas histórias de vida mais intensas. Sinto a falta do Cain e do nosso anjinho…
ANA CARRILHO, 8.º B – 2020/2021